Renata Gaspar fala do desafio de viver Stephany, que sofre violência doméstica, em sua estreia nas novelas

Expoente do humor, atriz substituiu Maria Flor no papel, a três meses do fim das gravações de Um Lugar ao Sol


06 de dezembro de 2021 04h42

Foto: Carmen Campos

Por Luciana Marques

*A entrevista completa está disponível no vídeo, abaixo.

Reconhecida por trabalhos de sucesso na linha do humor, como Tá no Ar: a TV na TV, Fora de Hora, as séries Descolados, Chapa Quente e Pais de Primeira, além de  atuações potentes no teatro, Renata Gaspar se viu diante de um desafio e tanto agora nas novelas. Cerca de três meses do fim das gravações de Um Lugar ao Sol, - a trama estreou pronta - a atriz recebeu o convite para substituir Maria Flor, que engravidou, no papel da piriguete Stephany. “Entrei no bonde andando, ela já tinha gravado metade da novela e tive que regravar tudo. Mas foi um clima acolhedor, tive muita liberdade para criar, trazer a minha interpretação da personagem”.

Apesar de Stephany ter momentos leves, com tiradas divertidas, ela sofre violência doméstica no casamento com Roney (Danilo Grangheia), e a atriz conta que gravou sequências pesadas. Renata, que até hoje só namorou mulheres, revela que viveu relações tóxicas. “Tive dois relacionamentos muito esquisitos, que eram uma explosão. Já fui agredida, já agredi. Sei o lugar que essa loucura habita, mas ainda é diferente de onde a minha personagem está. É outra coisa, nas condições dela, onde vive, casada com um homem...”.

Stephany (Renata Gaspar). Foto: Globo/Fabio Rocha

A Stephany tem um lado divertido, da periguete, de falar o que quer, mas tem essa relação abusiva. Como você a definiria? Ela é uma pessoa muito forte, mas tem a fragilidade dela, o seu calcanhar de Aquiles, que é sofrer violência doméstica, ela vive esse relacionamento abusivo. E a novela já parte desse momento em que a Stephany já começa a questionar esse relacionamento. A partir do momento em que a Érica (Fernanda de Freitas) se muda para a casa dela, começa a falar para ela, que isso não é normal. Como você deixa ele falar assim? Ela sempre diz, ah, ele é assim, deixa ele, tadinho. Tem todas essas relevâncias da Stephany em relação ao Roney, mas no fim das contas, ela vive uma relação abusiva há muito tempo. E não conseguiria sair disso se não fosse alguém de fora estar introduzida no mesmo ambiente. Então, a partir daí, a Stephany já começa a enfrentar o Roney, ela já está percebendo que talvez aquilo não seja natural.

E por que você acha que ela demora para perceber isso? Ela é apaixonadíssima por ele, é louca por esse homem, mesmo com tudo o que acontece, ela não consegue sair dessa relação, ela se prende ali num lugar que eu, como atriz, tive que achar esse ponto. Vai acontecer tanta coisa... É uma relação abusiva, tem cenas pesadas. E a gente pensa, por que ela volta? O que acontece? Tem uma dependência de quem a supre de todas as maneiras. Eu imaginei que a Stephany está com ele desde nova, quase passada do pai para o namorado, tem essa ideia de ser passada para outro “dono”. Então ela é “propriedade” dele, ela não se vê de outra forma. Mesmo sendo uma pessoa forte, porque ela não é uma coitadinha, ela fala tudo o que pensa para a irmã, também tem o seu lado malicioso, de esperta, isso vai aparecer mais para a frente, é ambiciosa. Quando a irmã começa a se apaixonar pelo Santiago, ela quer tirar alguma vantagem, é interesseira. Mas o que ferra ela é a relação íntima com o marido.

O Brasil bate recordes de casos de feminicídio e muitas mulheres não conseguem sair dessa relação tóxica e violenta, como você já comentou um pouco. Você chegou a conversar com alguma pessoa que viveu um relacionamento assim para compor a personagem? Eu não tive tanto tempo para a pesquisa que eu gostaria. Mas eu assisti muitos filmes, documentários, tem muito material sobre o tema, entrevistas, fui atrás de tudo. Eu adoraria ter conversado, mas não consegui. Mas vendo esse material todo, acho que há muitas coisas envolvidas. Tem algo cultural forte, um patriarcado cultural, isso que eu falei antes, de você pertencer a alguém e logo depois pertencer a outro e isso não é questionado. Principalmente em regiões de pouca renda, meninas que acabam casando cedo e não tendo a sua própria vivência como ser. Então essa codependência começa cedo. Tem os casos de estupro de crianças ou até mesmo as meninas que casam cedo e na relação sexual aprendem só o que homem gosta, o que ele quer, você não tem autonomia. E isso acaba sendo normalizado porque essa menina nem sabe que há um jeito diferente. Agora que a gente está começando a ter essa consciência de pedir ajuda, esse empoderamento da mulher, de saber quem é você no seu ambiente social, para que eu sirvo, eu sou importante? Aí a gente já fala de uma autoestima, de um autoconceito sobre você.

Você já viveu algo assim ou viu alguém próximo passar por isso? Já vivi. Eu só namorei mulheres até hoje. E eu tive dois relacionamentos muito esquisitos, que eram uma explosão. Então já fui agredida, já agredi em relacionamentos muito conturbados, tóxicos. Já vivi coisas pesadíssimas, de muita briga. E é engraçado que eu já vivi isso, sei o lugar que essa loucura habita, mas ainda é diferente de onde a minha personagem está. É outra coisa, o que é viver isso nas condições dela, onde vive, casada com um homem...

O que fez você virar essa chave, foi a maturidade, de chegar e dizer, não quero mais isso, quero uma relação mais tranquila? Eu acho que é você ir se gostando mais. Acho que a gente dá passos com isso, não que a gente precise passar por coisa terríveis para aprender. Não necessariamente, mas elas ajudam você a dar passos. Eu sou uma pessoa muito ligada à espiritualidade, autoconhecimento, eu sempre estudei muito, sempre procurei melhorar, evoluir, entender quem eu sou, o propósito de estar aqui. E nessas você vai se gostando, se sentindo mais útil, importante e você se gosta mais, se sente merecedor de algo bom. Você vai melhorando esse autoconceito. O que pensa de você vai ficando mais elevado, mais perto da sua essência. Porque eu acho que todo o mundo é bom, é tudo isso, o que confunde é o que a gente pensa da gente mesmo, o que a sociedade impõe. Mas no fim das contas tem o que a gente pensa da gente. E geralmente esse sofrimento nasce de uma culpa basal, de algo basal. E enquanto a gente não olhar pra isso é difícil a gente caminhar. Mas a resposta está sempre em se amar mais. Acho que hoje eu sinto que estou mais pronta para servir do que pedir e nessas eu me gosto mais.

Foto: Carmen Campos

Você tem uma trajetória bonita, sólida, em séries, programas de humor, teatro, cinema. Foi uma escolha não ter feito novela até aqui? Eu sempre confio muito no fluxo que rola naturalmente. Eu sinto que nunca fui muito dessa pessoa ambiciosa de ir atrás de trabalhos, eu gostaria de estar lá e lá... As coisas meio que aconteceram pra mim, de eu confiar mesmo e acreditar. As coisas acabaram chegando, o fato de eu ter ido mais para o humor. Todo os trabalhos que fiz, como você falou, couberam muito bem, outros não cabiam, eu já neguei, falei não. E outros que eu falei não, pensei, mas peraí, acho interessante isso para eu abrir a minha cabeça um pouco também. Então teve coisas que eu fiz que foram nesse sentido. Eu dizia, jamais faria isso, mas por quê? Tem preconceitos na cabeça que você vai abrindo. Mas acho que tudo o que fiz eu curti muito, tem a ver. E eu só não fui para novela antes porque não rolou mesmo. E eu nunca tive uma grande vontade de fazer novela, não menosprezando, mas não fazia tanta questão. E eu estava bem feliz fazendo as séries, então acho que chegou quando tinha que chegar.

E chegou com Stephany chegando... (risos). Fala um pouco daquele visual dela... Ela chega chegando mesmo. Eu uso peruca. Eu estava com o cabelo mais comprido, ondulado e cortei duas semanas antes do convite para a novela. Cheguei lá e tive que usar peruca, deu para resolver. Tem as unhas, ela é uma periguete, maravilhosa, gosta de expor o corpo...

Apesar do assunto sério, da violência doméstica, ela também passeia no humor, né? Sim, principalmente nas cenas com a Érica. E eu e a Fê tivemos uma química maravilhosa. A gente falava que queria ter mais cenas leves, porque muitas vezes eu tava lá, toda estragada, e ela vinha falar comigo, é a irmã mais velha cuidando da mais nova. E quanto tinham cenas de leveza, a gente amava fazer, a gente gostava de brincar, foi uma química ótima. E com o Danilo também foi maravilhoso. Tinham as cenas fortes, das brigas, mas algumas leves também. Eu tive muita sorte de ter parceiros muito legais, talentosos. Eu fui muito bem recebida.